Com a classe habitual, Clarke mistura, em prosa elegante e narrativa instigante, elementos “semi-históricos” (o romance é ambientado na Taprobana, país fictício inspirado no Sri Lanka, a terra que o autor adotou como pátria), ciência, religião e filosofia.
O enredo gira em torno da construção de um elevador espacial (um tema recorrente nas obras do autor) em uma montanha sagrada da Taprobana, mas a questão fundamental do romance é a busca pelos limites entre o humano e o divino, bem como as tentativas dos humanos de se tornarem, eles próprios, deuses.
A história de As Fontes do Paraíso articula três planos narrativos distintos, que se entrelaçam:
1) A jornada de Kalidasa, o cruel rei da Taprobana que construiu, ao pé da montanha sagrada Sri Kanda, um complexo formado por um palácio colossal e jardins suntuosos, na ânsia de alcançar a imortalidade.
2) Mais de dois mil anos depois (ou seja, no século 22 da nossa era), o projeto de construção, na mesma montanha sagrada, do Elevador Espacial, sob a determinada coordenação do engenheiro Vannevar Morgan.
3) A passagem pelo Sistema Solar, décadas antes da construção do elevador, de um artefato alienígena inteligente batizado de Planador Estelar.
Esses três arcos, cada qual a seu modo, representam os desafios feitos pela técnica e pela ciência humanas (no caso do Planador, alienígenas) a nossa própria condição mortal e finita, testando os limites do tempo e do espaço e esticando-os. Em paralelo, persiste a crença no mistério de Deus e do sagrado, primeiro na perenidade do mosteiro budista erigido no topo da montanha sagrada e, depois, na persistência do Dr. Choam Goldberg, que abandonou a ciência para se tornar um místico e defensor da religiosidade.
UM LOUVOR À TÉCNICA
Como é característico dos romances de Clarke, As Fontes do Paraíso apresenta uma visão otimista da técnica e da ciência. A humanidade, que vive em uma Terra globalizada e livre da bipolaridade EUA-URSS (o livro foi escrito com a Guerra Fria em pleno vigor), colonizou a Lua, Marte e Mercúrio e sonha com as estrelas. Estações espaciais permitem, entre outras finalidades, controlar o clima e dissolver tempestades antes que elas ocorram.
E é no espaço, em fábricas orbitais, que se manufatura o hiperfilamento, um material de resistência quase infinita que permite a Vannevar Morgan conceber o Elevador Orbital, uma torre de milhares de quilômetros ancorada na montanha Sri Kanda e que possibilitaria baratear e agilizar o envio de missões ao espaço, dispensando o caro e pouco prático uso de foguetes.
A ideia é possível na vida real e já foi apresentada, como teoria, há décadas: baixar um cabo (resistente à fricção com a atmosfera) de um satélite de órbita estacionária até a superfície da Terra permitiria usá-lo como elevador. Clarke, aliás, é mais do que apto a romancear este conceito, pois ele mesmo, na juventude, trabalhou como pesquisador de radares e apresentou, em artigo publicado bem antes do Sputnik, a hipótese de uso de satélites geoestacionários para facilitar as telecomunicações – razão por que a órbita estacionária em torno do Equador é chamada de “Órbita Clarke”.
Em As Fontes do Paraíso, Morgan, o célebre e ambicioso engenheiro responsável pela Ponte de Gibraltar, que uniu a Europa à África, vê no desenvolvimento do hiperfilamento a possibilidade de erguer uma obra ainda mais colossal: uma ponte para o espaço. O projeto, entretanto, enfrenta um obstáculo: só existe, no mundo inteiro, um lugar propício à construção, o Sri Kanda, lar de uma milenar ordem budista que não tem qualquer disposição de abandonar o seu mosteiro nem de conviver com uma via expressa espacial no seu quintal.
O duelo de Morgan com os monges ocupa boa parte da primeira metade do romance e é ocasião para Clarke fazer reflexões sobre religião, direito e bastidores da política global, e o dilema tem um desfecho surpreendente.
Além da oposição da ordem budista, o engenheiro que busca a imortalidade e a inscrição no panteão dos deuses precisa enfrentar outros antagonistas, ainda mais poderosos: as limitações da tecnologia que lhe é disponível, as imutáveis leis da física, a nem tão previsível dinâmica dos corpos celestes e, é claro, a sua própria fragilidade de organismo vivo e vulnerável. Conseguirá Morgan superar Kalidasa e abraçar a divindade ao som dos jorros das fontes do paraíso? As semelhanças entre o engenheiro do futuro e o monarca do passado ficam mais evidentes a cada página e essa rivalidade, que ultrapassa a barreira do tempo, é o fio condutor do romance.
O MENSAGEIRO DAS ESTRELAS
E há, ainda, a lembrança, sempre presente, da passagem do Planador Estelar pela vizinhança da Terra. Alguns dos trechos mais preciosos do livro são os que narram o diálogo estabelecido entre a sonda robótica, enviada por uma civilização de uma estrela próxima, e a humanidade.
Não entrarei em detalhes para evitar spoilers, mas a ideia do Planador é interessantíssima e é outro maravilhoso produto do gênio criativo de Clarke. Os trechos em que os humanos e o visitante alienígena trocam informações e impressões ensejam uma bela discussão sobre temas filosóficos e religiosos.
O cérebro artificial do Planador é o componente de estranhamento de que o autor se vale para questionar elementos fundamentais da nossa cultura – e não deixa de ser irônico, como notou uma personagem do livro, que as transformações sofridas pela humanidade após o contato com o artefato sejam muito mais de ordem filosófica que tecnológica.
O Planador avança para além do Sistema Solar em sua jornada infinita de conhecimento e busca, deixando-nos pouco mais que um cartão de visitas com “o número de telefone” dos seus criadores, e ele próprio representa um desafio da civilização que o construiu aos deuses do tempo e do espaço – no fundo, por mais que considerem a religião um produto da reprodução de mamíferos, os desbravadores do Lar Estelar estão em uma empreitada semelhante às de Morgan e de Kalidasa. Uma luta contra o incomensurável, um desafio ao divino. Será possível conhecê-lo, ou, então, negá-lo?
Com sabedoria, Clarke deixa a questão em aberto. Usando-se das ideias da sua personagem Dr. Choam, o autor diz que, ainda que as descobertas narradas no livro coloquem em xeque (e, eventualmente, destruam) as religiões burocratizadas e sistemáticas, a ideia de Deus e a busca pelo Inefável não apenas permanecem vivas como, até mesmo, ganham novo fôlego. O recado parece ser: o divino é mistério e não pode ser alcançado por um palácio na montanha, nem por uma ponte para as estrelas, nem por uma nave capaz de atravessar as inconcebíveis distâncias estelares; a única forma de conhecê-lo é olhar para dentro de si mesmo. Como fazem os monges do antigo mosteiro no topo do Sri Kanda.